Narciso e Narciso



"Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.

E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.

E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.


Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.

E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.

Assim amam-se agora
se odiando.

O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira".

Ferreira Gullar no livro "Barulhos"

2 comentários:

Mariana (Delta) disse...

Mauro,sensacional o seu blog! Gostei muito...tem uns links ótimos e uns posts bem legais!
Estarei sempre por aqui comentando!
Abraço,
Mariana.
(Profª de História do Delta)

Juliana disse...

Ameeei esse texto *-* perfeito!