Por que não se morre num sonho?

Por que não se morre num sonho?
outubro - 2010

Thiago E. Luzzi Galvão - Psicologia

Como bom andarilho das horas vazias, quando me chegou na tampa essa pergunta, fui logo à pesquisa nas ruas, por que sabe-se bem que ficar com a dúvida é correr o risco de morrer sem saber, e eis o problema: dúvida se morro, dúvida se não morro. Chega disso.

Na praça Júlio Prestes, a estátua não me deu qualquer resposta, e ao que tudo indica estava dormindo. Chegando à Avenida São João, todo o pavimento dava uma de São Pedro, negando-se três vezes, quando pouco, a dar-me a solução de tão sacro problema. Os jovens bêbados da Rua Augusta mal me escutavam, e fica aqui reclamação à Prefeitura: nem a estátua, nem a rua, nada me foi tão deselegante quanto essa juventude desviada que vaga pela não-escuridão da noite em São Paulo sem saber sequer dizer o que é o fim ou o que é o começo, seja da vida, seja da garrafa, seja das duas, que se lhes fazem numa só.

Por fim, me abrigando sob um toldo irrespondido, a cabeça derretendo num caraminholatejar, chega-me um cão afavelmente sujo, que após abrigar meus dedos carinhosos lá pelos pelos entre suas orelhas, questionou-me, como quem nada quer:



— Olá! Que fazes aqui?
— Quem é você, meu Deus!
— Sigmund Freud, eu lhe digo.
— Oh, o do charuto? Talvez minha pergunta até te ofenda!
— Não pensaria em duas colocações de veracidade tão divergente. Sim, descrever-me pelo fumo calhou perfeitamente.
— Pois eu te pergunto, por que não se morre num sonho?

O cão levantou-se. Por um instante cheguei a pensar que ele ia-se embora, quando na verdade ele apenas sentou-se ao meu lado, encostando-se na parede. Com a pata esquerda, segurava um charuto, que fumava sem tragar.

— Ora, alguma vez já morreste, meu caro? — Perguntou o cão.
— Obviamente que não — respondi, depois pensando que não era tão óbvio assim.
— Pois me diga, já sonhaste com algo que nunca vivenciaste?
— Sim, toda a noite.
— É evidente que o enredo do sonho é inédito, mor das vezes. Todavia, já sonhaste com algo absolutamente estranho? Algo que fosses incapaz de nomear ou explicar o que era? Algo que não fizesse, mesmo ao ser destrinchado em pedaços menores, parte dos traços da tua memória?
— Talvez... é, pensando bem...
— Pense que os teus desejos, em especial os desejos inconscientes, seriam como o Sol. As leis de funcionamento dos sonhos seriam como as leis dos movimentos planetários, que definem a órbita da Terra. E a Terra, em si, seria formada por todas as suas representações linguísticas implícitas, seus traços de memória, conscientes e inconscientes. Só esses traços são corpos dotados de "massa" e capazes de gravitar. A terra gira em torno do Sol, mas as pessoas que estão nela fazem coisas muito diferentes, únicas e pessoais, sob o mesmo Sol. Todavia, aquilo que não existe, não tem "massa", não pode girar ou desgirar em torno desse Sol.
— Quer dizer que não adianta que eu deseje, com toda a minha alma, a morte. Nem assim sentirei a morte em meu sonho?
— Muito bem colocado, caríssimo. Não há representação inconsciente para a morte; você não a tem no banco de dados memorístico, para "voltar a vivenciá-la" durante o desejo realizado do sonho. E você só pode vivenciar o que está na tua linguagem, na tua memória.

Desconfiei um bocado, a teoria era complexa e fácil de se duvidar, mas decidi seguir com a pesquisa durante meu próprio sono. Sorri e agradeci com sinceridade àquele vira-lata sujo que vagava pela cidade talvez com a maior das imundícies atuais: a sujeira de escutar o outro.

Nenhum comentário: