A psicologia clínica: "visão de homem" e "visão do homem"



A psicologia clínica: "visão de homem" e "visão do homem"
setembro - 2010

Thiago E. Luzzi Galvão
- Psicologia

É certo que cada ser humano, ao longo de sua vida, exposto a experiências únicas, constrói sua própria concepção ou visão de homem, que, embora dependa muito de sua história de vida e de tudo o que extraiu das interações humanas que teve, não depende da visão de homem daqueles a seu redor. Isso por que, embora alguém tente-lhe convencer das próprias ideias acerca da "forma como o homem é", essa explicação ainda assim será interpretada por um "dicionário mental" particular daquele que ouve, ou seja, na linguagem do outro, que, portanto, absorverá as ideias daquele que o tenta convencer de uma maneira diferente daquela que este gostaria.

Dessa forma, a posição do psicólogo clínico fica em cheque: como, com uma concepção de homem e com uma linguagem peculiares e que não podem ser adequadas a um padrão, interagir com outro ser humano, que tem suas próprias visões e sua própria linguagem, e ainda ajudá-lo com alguma demanda (por exemplo, a compreensão de si mesmo)?

A tarefa, embora complicada, não é impossível. É importante perceber que, embora as visões de homem sejam individuais, não são imutáveis e não podem ser encaradas como paradigmáticas. O ser humano caracteriza-se pela mudança constante, pelo devir, de modo que também a concepção de ser humano e a linguagem de cada pessoa estão constantemente transformando-se. Mais do que isso, as relações com humanos sempre deixam marcas nos envolvidos, e alteram suas ideias individuais, não misturando-as ou tornando-as semelhantes, mas apenas reestruturando-as para que comportem as novas experiências que a interação trouxe.

Dessa forma, um dos grandes desafios do psicólogo clínico seria transcender a sua visão de homem, peculiar e incopiável, para assim construir, com cada paciente, a cada sessão, uma visão do homem com quem ele está interagindo, que, além de ser peculiar e impossível de ser copiada por outrém, é também impossível de ser generalizada (pelo menos em sua inteireza). Assim, o psicólogo consegue conceber a visão de homem e a linguagem que o paciente construiu em sua vida, e, embora não as possa entender plenamente, tem a possibilidade de compreender a situação do mesmo para, assim, tentar levá-lo ao caminho que conduz à resposta que ele busca.

Quando o psicólogo interage com o paciente, é importante que ambos estejam abertos à criação de um vocabulário particular à diade, um "dicionário comum", uma linguagem interna que facilite a compreensão do psicólogo. Se o paciente cita, por exemplo, sentir "medo", não se deve descontextualizar o citado do citador e do contexto da citação e trazê-lo para sua linguagem; o "medo" deve ser um verbete passível de uma significação única, que ao longo do tempo será convencionada e "adicionada" ao dicionário comum que psicólogo e paciente vão construindo sessão-a-sessão.

Na verdade, esse processo é deveras simples. Não se trata de realmente analisar cada palavra ou interjeição do outro, mas, de algum modo, buscar "sintonizar-se" com ele, "sincronizar" os pensamentos, tentar funcionar de maneira mais-ou-menos semelhante; trata-se de uma empatia, só que sem afetar-se: compreende-se aquilo que o outro sente, mas não se traz o sentimento do outro para si. O dicionário comum é construído ao longo da sessão, mas ele fechado ao fim dela e "colocado na estante" até a próxima sessão, servindo como um canal mais direto de comunicação, através do qual o psicólogo tem mais chances de criar uma mais completa visão do homem com o qual está interagindo.

"Então" poder-se-ia perguntar "isso significa que cada interação, por ser única, intransferível, e incopiável, não pode ser absorvida e reutilizada pelo psicólogo? Não existiria o 'ganhar experiência', já que as interações seriam a construção de um novo dicionário comum?". Nesse caso, melhor seria responder que "Não, não se trata bem disso".

A construção desse canal de comunicação psicólogo-paciente, assim como qualquer interação humana, altera ambos os envolvidos e os leva a reconstruir suas próprias concepções de homem. O psicólogo é capaz, sim, de adquirir experiência com a prática, abrindo cada vez mais o campo de visão e ficando, para ele, um pouco menos complicado, ao longo do tempo, criar uma nova visão do homem quando um novo paciente adentra sua sala. Os dicionários comuns, embora únicos para cada díade psicólogo-paciente, podem e devem ser "consultados", ou seja, é possível encontrar semelhanças entre casos e associar alguns tipos de significados construídos, não de maneira generalizadora, buscando um padrão, mas sim de uma forma mais simbólica. Embora "medo" signifique coisas diferentes para pessoas diferentes, utilizar-se do que se aprendeu ao definir "medo segundo João" para buscar compreender "medo segundo Pedro" é válido, se o "medo segundo João" parece estar mais próximo do "medo segundo Pedro" do que o "medo segundo eu mesmo"; nessa situação, mesmo o "medo" fosse diferente para os dois, encarar um como o outro pode ser válido para possibilitar a comunicação do psicólogo com Pedro.

Entrementes, não é só através do contato direto com pacientes que se adquire experiência. O contato com outros psicólogos, com a literatura sobre psicologia, e mesmo com outros elementos de cunho não explicitamente psicológico, mas que carreguem ideias (por exemplo a religião, o cinema, a música e a literatura) são importantes para ajudar aquele que pretende ser um bom psicólogo clínico a transcender sua visão de homem, que é restrita a si, e adquirir novas perspectivas que o ajudem a compreender o outro. Ao se estudar, por exemplo, o cristianismo, não se deve buscar em nenhum momento "tomar a concepção Cristã de homem" para si, mas é importante que se pense que essa concepção pode conter facetas que se manifestam nas visões de homem de alguns pacientes, ou mesmo facetas que são úteis para se compreender a linguagem de um paciente.

Embora o "medo segundo Maria" seja diferente do "medo segundo eu mesmo", ele pode ser parecido com o "medo segundo o cristianismo", de modo que ter tido a experiência de estudar e compreender as ideias, a visão de homem e a linguagem do cristianismo seriam muito úteis para a compreensão do "medo" que a paciente pudesse sentir. Todavia, se o psicólogo em algum momento se limitar à visão do cristianismo, jamais conseguirá compreender a visão do próprio paciente, que é única e diferente da cristã; o efeito de adotar e limitar-se a uma outra concepção de homem pré-existente, qualquer que seja ela, acaba sendo o mesmo de limitar-se à sua própria concepção de homem: fica difícil compreender o outro, e de ajudá-lo com suas demandas.

Sendo assim, é inviável definir (ou definir um grupo de) "visões de homem" que sejam suficientes para embasar uma psicologia clínica. O homem moderno, como ser em constante devir e constante construção de suas concepções sobre o ser humano e de sua linguagem, não pode ser encaixado em nenhuma visão de homem que não seja a sua própria. Destarte, todas as grandes visões de homem existentes são importantes para um psicólogo clínico, embora nenhuma seja suficiente, sendo necessário que ele não se baste em nenhuma delas e nem na sua própria, absorvendo apenas a experiência que cada uma pode trazer-lhe para o momento da interação com o paciente, em que nenhuma delas é bastante como resposta, mas em que elas podem ter uma importância interpretativa e compreensiva fundamental.

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